Renascer

Um amigo meu descobriu em Macau, numa biblioteca, alguns títulos da Maria Ondina Braga que eu não consigo reconhecer de entre os que tenho na minha livraria, onde julgava ter já tudo o que ela publicou em prosa. Imagine-se o alvoroço de imaginar em alguém mais vida do que a que sonhamos ter conhecido. Espero apenas que «Debaixo de uma redoma», «Chá de jasmim», «A casa suspensa», «A despedida», «A língua», «A professora de piano», «A despedida» não sejam textos de livros que eu já li. Se o forem, viverei o já vivido como se o vivesse de novo, o que é uma forma de renascer.

A sombra dos dias

Estar-se à mercê do destino, de um gesto alheio, doer-nos a sua ausência. Sofrer-se a incompreensão silenciosa ou o desprezo ruidoso. Tornar-se ridículo carpir, encerrar-se a dignidade no interior austero de cada um. Concebido desnaturadamente «tal a primeira mulher do mundo, segundo Confúcio concebera da própria sombra». É assim em Maria Ondina Braga, no conto O Filho do Sol: «a Deusa da Ansiedade velava pelo seu fado, porque nenhum deus sabia o seu horóscopo».

Indiferente e sôfrega

Os Rostos de Jano é na obra de Maria Ondina Braga uma excelência de sensualidade e em certos momentos de erotismo. Literatura de recolhimento interior, a sua, parece confinar-se a sentimentos tristonhos de ausência´carnal, sem que um afago, uma volúpia, um halo de desejo pareça ferir-lhe as noites ou iluminar-lhe os dias. E, no entanto, há nesta narrativa, escrita em 1973, sempre o interior de piedade pela sua condição de solitária. «Um filósofo chinês disse que o sentimento da comiseração é o começo do amor», escreveu. Haverá quem leia isto e se revolte, pragmática e racional, como isto tivesse sido escrito por «homens que haviam nascido agachados e a quem só alguma, rara mulher, restituiria a altura. Mulher que os aceitasse sem paixão por piedade». Há quem leia isto e compreenda que está aqui o retrato negativo do que resta, num mundo povoado de naufrágios. Uma vida já indiferente, sôfrega e ansiosa.